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AVENTURAS DE UMA MÍOPE/ Regiane Garcia

Na infância não precisei usar muito óculos - ganhei o primeiro aos oito anos -, já que meu grau havia se estabilizado. No último ano do ensino médio, voltei a ter dificuldades para ler o quadro branco, principalmente com as escritas em vermelho. Era sempre um “fessora, pode trocar a cor do canetão, por favor?”. Acredite, estou quase me formando na faculdade e ainda preciso repetir essa frase aos professores.
 

Entretanto, passei alguns dias relembrando minhas aventuras com os óculos e com a falta dele. Cada momento que dá até para duvidar.
 

O mais comum é dormir com eles. Sempre me deito, mas só o tiro depois que a luz é apagada. Só que nem sempre é assim. Às vezes acordo acreditando que um milagre aconteceu, mas quando percebo, eu dormi com os óculos. Não sei como nunca quebrei um assim.
 

Outra coisa rotineira é ir pro banho com eles. Quem nunca? Quando percebo já tá todo respingado. E quando ele cai? Santo Cristo! Como diria Tiago Iorc, “o coração dispara, tropeça, quase para”. E se arranhar? A gente até chora.

Ao longo dessa saga, já foram seis armações. Cada uma teve sua história e nenhuma era igual a outra. A segunda armação desapareceu, sumiu diante de mim. Fiquei vários dias espremendo os olhos para não perder o ônibus e para entender o que tava escrito no quadro.
 

Finalmente comprei a terceira. Durou bastante, até eu ter que mudar o grau novamente. Desta vez, comprei um bem estiloso, era cor de açaí. Tava na moda. Que grande companheiro. Ficou comigo por dois anos, enfrentamos chuva, fumaça do café e banhos quentinhos. De vez em quando a gente perdia o ônibus. Eu sabia que a hora de o abandonar estava perto.
 

Então, troquei meu querido companheiro por duas lentes de contato gelatinosas. Mas no fim das contas, ele ainda era o meu preferido. Até que ele não aguentou mais e resolveu se aposentar de vez, digo, quebrou-se.
 

Passei vários dias com muita dificuldade para enxergar, não tinha mais lentes de contato e nem os óculos podia usar. Até que fiz um novo exame e comprei a quinta armação. Era linda, um rosa-antigo, quadrado, do jeitinho que eu gostava. Com o grau novo eu enxergava tudo, lia tudo que era placa, letreiro e cartaz pelo caminho.
 

Até que em um dia tranquilo, de passeio a Conceição do Mato Dentro, tivemos que atravessar um rio. Além de meio cega, sou meio baixinha. O rio estava bem cheio e a correnteza estava forte, ultrapassava meus joelhos. Lembro como se fosse ontem. Em um meio abraço ao líder da expedição, que estava nos ajudando a atravessar, senti meu óculos afrouxando, batendo em meu ombro e caindo lentamente. Primeiro na pedra e sequência um mergulho bem fundo no rio. Havia apenas dois meses que eu estava com ele.
 

Após atravessar as águas, que, depois deste momento triste, pareciam mais fortes e mais fundas, cheguei em terra firme. Os olhos estavam suando e, com muita gente, não poderia chorar assim tão fácil. Abracei meu namorado e os dois amigos que estavam comigo. Respirei fundo. Segui a caminhada rumo ao desconhecido, já que, a partir desse ponto, estava tudo sem foco para mim.
 

Para piorar a situação era um feriado na quinta-feira. Como eu conseguiria um óculos no tempo mais curto possível? Na sexta corri na ótica, e implorei: “moça, eu preciso de MUITA URGÊNCIA”. Entreguei uma armação velha, nunca usada. Ela me deu o prazo de três dias úteis, ou seja, ficaria praticamente uma semana sem óculos. Tive que apertar os olhos o máximo possível e contar com a sorte para não perder tantos ônibus e ninguém pedir que eu lesse algo distante.
 

Finalmente ficaram prontos, a armação era completamente diferente do que eu tinha costume e foi meio difícil adaptar. O outro, mais moderninho demoraria cerca de nove dias a mais para ser entregue. Mas sobrevivi.
 

Hoje, com os óculos “novos”, sigo enfrentando as mesmas aventuras, no banho, na hora de dormir, as quedas livres - isso que eu chamo de viver com emoção. Esse é o meu melhor amigo, companheiro fiel, que vive deixando as coisas mais nítidas para mim.

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