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O DESMANCHA PRAZERES / Francyne Perácio

Você provavelmente não deve se lembrar de mim. Mas minha mente pós-traumática não me deixa esquecer sua doce face de menino anjo. Aquelas bochechas rosadas escondiam a maldade que você carregava no coração. Juro que não estou exagerando. O que você fez não tem perdão!

Era o último dia daquele ano. Não me recordo qual, mas lá estava eu toda feliz bancando a Sherlock Holmes. Tinha ganhado no Natal dois jogos: War e Scotland Yard. O primeiro é o melhor jogo de tabuleiro de estratégia que se têm registro. O segundo não conhecia. Mas como se tratava de investigar crimes ocorridos em Londres, desvendar charadas e descobrir o assassino, logo me apaixonei.

 

Há uma semana, minha única missão na vida era acordar e maratonar cada um desses presentes. Minha prima, alguns anos mais velha, também fazia parte da equipe. Na véspera do ano novo, não seria diferente, coloquei embaixo do braço minhas relíquias e parti para a casa dela. Neste dia, um amigo também se juntou ao grupo.

 

Meu prazo era até às 5 horas da tarde, senão iria me atrasar para as arrumações da festa de Réveillon. Até então nada de estranho, jogamos várias partidas. Ora um vencia, ora todos desistiam e começavam outra rodada... Eis que você surge na grade do alpendre da casa e começa a observar os trabalhos. Distraídos, ignoramos sua presença.

 

Não contente em só observar, em uma piscada de olhos, você pegou a mangueira na calçada e apontou para nós. Foi uma loucura. A varanda toda inundada, gritaria e os jogos afundando naquele mar terrível.

 

Eu estava em choque. Por sorte, seu tio chegou e tomou a mangueira da sua mão. Até hoje eu me pergunto o que passou na sua cabeça de “Denis, o pimentinha”. Mas, voltando ao acidente... fui apurar os estragos. Com o War, tudo certo, estava na caixa e sobreviveu, já o Scot, tudo errado. O tabuleiro ficou submerso, tal qual o Titanic. As peças de papel também todas encharcadas. Na hora não sabia se te matava, ou salvava o que restou do meu pobre jogo.

 

E o pior foi a sua cara, dando risadas daquele episódio trágico. Comecei a gritar: Meu jogo, meu jogo! A única pessoa sensata foi minha prima, pegou um pano, secou o tabuleiro, as peças e guardou tudo.

 

Cheguei em casa bem antes do combinado. E aos prantos tentei contar a história. Meu pai, com toda calma todo mundo, disse: Calma, filha! Quanto custa esse jogo? Eu dou um jeito, compramos outro. Não! Eu queria aquele e ponto final. Minha irmã e seu namorado, na época, compartilhavam da minha dor. Ele queria tirar satisfações, mas o pior de tudo era que o criminoso, o assassino cruel, era você, uma criancinha de cinco aninhos.

 

Você hoje já deve ser um homem feito. Pode até ter se tornado uma boa pessoa, talvez até tenha filhos, mas para mim, sempre será meu pior pesadelo.  O desmancha prazeres.

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