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"ALGUÉM NA VIDA": SER OU NÃO SER? / Thaís Nascimento

Dizem que você tem que ser “alguém na vida”. Dizem para estudar, até mesmo teorema de Pitágoras e Báscara, sabendo que nunca irá utilizar na prática cotidiana. Dizem para ser médica, engenheira ou arquiteta, pois isso é ser “alguém na vida”. Dizem para não ser empregada doméstica ou gari, pois isso não significa ser “alguém na vida”. Dizem para você ter o carro do ano e que para obter um tem que trabalhar dobrado. Dizem que se trabalhar muito terá muito dinheiro e prestígio. Hora extra, sem férias e com horário de almoço reduzido, mas mesmo assim será valorizado, será “alguém na vida”. É aquele ditado: “não é dar o peixe, tem que ensinar a pescar”, eles disseram...

Quando era criança, me perguntavam: “Thaís, o que vai ser quando crescer?”. Já dei as mais diversas respostas: pediatra, professora, dona de restaurante, cantora, atriz e até mesmo taxista, com a alegação de que iria viajar o mundo e conhecer culturas novas. A vontade de responder aquela famigerada frase “vou ser adulta, apenas” era enorme.

Aos 16 anos fui em busca do primeiro emprego. Queria minha independência financeira, carteira assinada e já me preparar para a fase adulta. Fui tirar a carteira de trabalho. Uma caderneta azul, preparada para vários carimbos e rabiscos dos donos do dinheiro e do poder. Dizem que parece passaporte. Passaporte do pobre. Hoje ela está toda bagunçada e em péssimo estado, depois de tanto levar para baixo e para cima em empregos que não me renderiam nem o que comer. Os atendentes do SINE onde tirei minha carteira ficaram maravilhados com a pouca idade e a disposição para trabalhar. Eles mal sabiam da disposição de outras pessoas insistirem que pela minha pouca idade tinha apenas que estudar.

Aos 17 anos me formei no ensino médio. Os professores falavam de ENEM, de entrar para um curso superior, que as universidades federais são as melhores e que as particulares nem tanto assim. Enfim, peguei o canudo. Saí da escola, mas sem sair da adolescência e sem emprego, já era obrigada a escolher minha profissão, a finalmente trabalhar. Me falaram novamente que tenho que ser “alguém na vida”. Mas agora já era para valer e isso me amedrontava.

Aos 18 anos comecei a “Via Sacra” para a assinatura do passaporte de pobre. Bati na porta de supermercado, escritório, empresa administrativa, indústria, escola, restaurante, comércio, empresa de call-center, loja de roupa, banca de jornal, até mesmo para representantes de Avon, Polishop e Hermes. A oportunidade veio em uma loja de utensílios domésticos. Foram três meses dando duro, fazendo hora extra, vendendo muito para a loja, batendo meta e ganhando apenas um salário mínimo. Trabalho demais para a dona da loja virar, sem algum motivo aparente, e falar: “A partir de semana que vem você não faz parte do corpo de funcionários dessa loja”. É o extremo da valorização do primeiro emprego e do trabalhador brasileiro.

Ainda aos 18, fui tentar a vida como atendente de call-center para a estatal de água. Dando duro novamente. Saindo de uma cidade da Região Metropolitana para a capital, uma hora e meia de viagem, por apenas um salário mínimo, para ouvir palavrões dos mais diversos dos clientes que estavam há três dias sem água. “Você vai trazer a água para mim A G O R A”, “vai vir dar um jeito na minha situação”, “vou te processar, sua filha da...”. Durou apenas seis meses. O gerente da operação virou para mim e para os aproximadamente 100 funcionários que trabalhavam comigo e disse: “Por corte de gastos, vocês serão desligados dessa empresa”. De volta à batalha.

Dezenove anos. Muita experiência e pouco ou quase nada de dinheiro. E o tal do ser “alguém na vida”? Vamos deixar para os fiscais de emprego e cursos alheios:

- Thaís, e a faculdade? Você faz nada mesmo! Você é um fracasso! Esse cursinho seu de Rádio e TV vai dar em nada... bla bla bla bla.

O mantra da paciência segue em frente. Novamente voltei a dar duro em outro call-center. Um clima bacana, mas pedi para sair quando o contracheque de junho de 2014 veio em 600 reais para pagar a matrícula da faculdade, que eu iria iniciar, de 920 reais. Terceira empresa em que saio em menos de dois anos. Posso até pedir música no Fantástico.

Depois de 20 anos de vida, entrei para o tal ensino superior. O curso é jornalismo. Já berraram comigo: “JORNALISMO NÃO DÁ DINHEIRO”. Anotei a crítica extremamente construtiva e ponderada.

Um ano depois vieram dois estágios. A realidade de um estagiário em uma empresa é que quando não há a obrigação de uma carteira assinada, FGTS e de cumprir as antigas leis trabalhistas, todo mundo trata bem e todos colaboram com ele.

Dois anos depois, carteira assinada nesse mesmo local de estágio. Enfim, jornalista. Achava que tinha me tornado “alguém na vida”, que tanto falavam comigo desde criança. Estava muito bom para ser verdade. Em um país onde, dia após dia, os trabalhadores sofrem golpe, a minha folha de pagamento veio da seguinte forma:

 

- Hora extra: 350 reais.

 

- Desconto INSS: 350 reais.

 

Isso sim que é ser “alguém na vida”!

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