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 O cinto do vovô / Letícia Polito 

Lembro-me como se fosse ontem de mim e de Clara, minha prima, bem pequenininhas, uns dez ou onze anos atrás.

 

Clara é seis dias mais nova que eu e, por isso, sempre fomos muito unidas, tipo irmãs mesmo.

 

Ela parecia a branca de neve. Pele branquinha, cabelos escuros e na altura dos ombros. Eu, pelo contrário, era loira dos cabelos cacheadinhos. 

Como nossos pais trabalhavam fora, vivíamos passando as manhãs na casa da vovó Mirza e do vovô Vicente. Havia toda uma preparação para o dia das empadas: aventais, cabelos amarrados e bandanas para não cair, sequer, um fiozinho naquelas de-lí-ci-as que só vovó conseguia fazer.

 

Nos dias em que não ajudávamos na cozinha, tínhamos que inventar uma brincadeira… que criança desse mundo consegue ficar parada? Aliás, em tempos de celular e computador, isso é até possível, mas, graças a Deus, diga-se de passagem, não vivemos a infância enfurnadas nas telinhas. 

As brincadeiras eram tantas… casinha, mamãe e filhinha, professora, secretária e… cutucar a careca do vovô enquanto ele via televisão. Confesso: era a que nós mais gostávamos. Repito: n.ó.s! 


Vovô sempre bem-vestido, com camisa social de mangas curtas para dentro da calça jeans, sapatos sociais e claro, o cinto para segurar as calças. Ou seria como adorno? Ou serviria, também, como objeto para assustar duas criancinhas que gostavam de incomodar um italiano em seu horário de lazer?

- Mio Dio! Ho intenzione di colpirvi ragazzi (Meu Deus! Eu vou bater em vocês), ele falava com a voz estressada e rouca e, então, tirava do quadril o cinto preto, de couro legítimo vindo da Itália, de altura de uns quatro centímetros e de consistência suficiente para deixar muitas marcas na pele de alguém. Direcionava o olhar a nós e batia, como chicote, no sofá. Confesso: essa ação de, no máximo, dez segundos durava, no mínimo, uma hora!

Sabíamos que vovô não teria coragem de nos machucar, tampouco chicotear. E então saíamos correndo para o colo da vó, que, quase sempre, estava no quarto fazendo palavra-cruzada. Ela, sem entender nada, nos acarinhava. E ríamos… sem parar.

 

Então voltávamos à sala, agachadas, pé ante pé, como se nada tivesse acabado de acontecer e, então, ficávamos atrás do sofá, sem que vovô pudesse perceber, e, adivinhem: dávamos umas cutucadinhas na careca dele. E caíamos na gargalhada, sempre. A história se repetiu várias vezes, por vários dias, por vários anos… 

Vovô se foi em 2005 e, desde então, perdemos a careca e o italiano mais querido de todos. Mas, triste mesmo é saber que nossas primas e primos mais novos não tiveram o prazer de cutucar a querida careca do vovô Vicente, brincadeira que ficará, pra sempre, dentro de nossa memória.

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