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 A Saga dos Objetos Perdidos / Sharese Sabino

Num desses dias em que a gente fica à toa em casa, morrendo de tédio, decidi limpar meu guarda-roupas. Estava deitada na cama e constatei que, há muito tempo, só colocava coisas lá dentro e não tirava nenhuma. Pois bem, vamos lá. Reuni toda coragem que tinha guardada e levantei da cama - nunca foi tão difícil dar cinco passos - mas consegui chegar lá e abri a primeira porta.

Comecei pela parte mais fácil: roupas. Acho que as roupas revelam muito sobre a personalidade de uma pessoa; as minhas, por exemplo, revelam minha personalidade de falta de dinheiro. Incrível encontrar roupas que usei na primeira semana de aula da faculdade e ver que ainda considero “roupa de sair”. Fiz uma anotação mental de comprar peças novas. Das roupas não tirei muita coisa, até porque a maioria ainda estava em uso.

Parti então para a parte dos cosméticos. A primeira coisa que pensei, quando abri a porta correspondente, foi: quando foi que comprei tanto creme de cabelo? Eram dezenas de potinhos das mais variadas cores, com os mais diversos cheiros e funções. E claro, todos com quase conteúdo nenhum. Foi a hora de pôr em prática a filosofia da minha mãe sobre todas as coisas que sobram: “mistura tudo num pote só e joga o resto fora”. Foram cinco potes esvaziados dois novos cremes de cabelo criados, cuja função e efeito eu só descobriria em outro momento.

Depois disso tudo, cheguei à parte mais complicada. Eu, como boa virginiana, tenho várias caixinhas de todas as cores e tamanhos espalhadas pelo quarto, cada uma com o conteúdo mais inusitado que a outra. Colares e pulseiras, documentos, maquiagens, cartas, canetas, adesivos de cadernos do Ensino Fundamental, esmaltes e bugigangas tecnológicas compunham o conteúdo das dez caixas encontradas no quarto afora. Foi numa delas que o encontrei.

Ele estava lá, numa caixinha que quase passou despercebida no fundo do guarda-roupas, esquecido pelo tempo e por mim. Será que ainda funciona? Foi a primeira coisa que pensei. Pois bem, vamos abrir. Não me lembrava direito de como se ligava aquela coisa, mas decidi tentar. A primeira tentativa foi frustrada, assim como a segunda, e, finalmente na terceira, percebi que estava descarregado e não ia ligar nunca. Nesse momento, foi iniciada a busca pelo carregador perdido, igualmente antigo e sem uso. Precisei abrir mais duas caixinhas para encontrar um carregador compatível e, depois de mais duas tentativas, consegui ligá-lo.

Dei um gritinho de felicidade ao ver que ainda funcionava, e logo comecei a investigar o seu conteúdo. Minha irmã, como uma boa curiosa, veio até o quarto ao ouvir minha comemoração.

  • Que negócio é esse? - Ela perguntou escorada na porta do quarto.

  • Serve para ouvir música - Respondi sem tirar os olhos da tela do dito cujo.

  • É tipo um celular? Conecta na internet? Eu nunca vi um desses - Replicou.

  • Não, só serve pra ouvir música mesmo - Falei.

  • Nossa, que inútil - Ela disse e foi embora.

 Por um tempo permaneci concentrada no conteúdo dele: todas as fotos salvas da Saga Crepúsculo, centenas de músicas de grupos que não existem mais, a cor totalmente desbotada pelo uso intenso e a raiva que eu sentia do bendito por ele não ter um auto-falante. Então pensei: “Inútil?”. Mal sabe ela que, aos dez anos, tudo que uma criança queria era ter um MP4.

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